Encontro de espiritualidade
Introdução
Existe um choque entre a imagem teológica do presbítero e a imagem sociológica do mesmo. Na primeira, o presbítero é exaltado e na segunda, diminuído. Não devemos renunciar à imagem teológica e, no entanto, também não devemos desconhecer a imagem sociológica que se faz do padre, em um tempo de inapetência para assumir o compromisso eclesial como em nossos dias.
“É inegável que vivemos em tempo de mudanças, ou mudança de época como se convencionou chamar. E isto provoca crises. A sociedade e a Igreja vivem hoje em condições de intempérie e de certo desvalimento, há um desconforto geral. A mesma condição intensamente secular do presbítero diocesano exige que ele viva, em certo sentido, na intempérie” (J. Uriarte).
Há um descompasso entre o que as pessoas buscam na religião (soluções e milagre) e o que oferecemos (a Palavra de Deus e os Sacramentos da fé que nos fortalecem como discípulos e missionários).
Por isso, não vivemos tempos de otimismo e sim de confiança, não são tempos de êxito, mas sim de fidelidade.
Levados na esteira da crise de autoridade da Igreja, os sacerdotes, viram diminuídas sua autoridade moral e capacidade de conduzir e de oferecer orientação espiritual. Daí a baixa autoestima que, muitas vezes, os padres apresentam. Em meio a tudo isto, é preciso retomar sempre a fidelidade à oração e à lectio divina, que ensinam a escutar silenciosamente o que Deus nos diz nos acontecimentos do dia a dia.
A guarda da Palavra de Deus torna-se para o padre, uma rocha firme de salvação e a base de nossa vida espiritual.
Mais que nunca, em nossos dias, é imprescindível o cultivo de uma espiritualidade forte, capaz de sustentar o cristão. Sabemos que o equilíbrio entre a interioridade e a exterioridade é uma condição básica da saúde humana. O homem sem vida interior cai num mecanismo que desfigura a realidade: simplifica o que é complexo e complica o que é simples.
A vida de uma pessoa consagrada, de um presbítero não poderá ser fecunda se não alcançar a harmonia entre interioridade e exterioridade. Por isso, a necessidade de parar para refletir, para cultivar a espiritualidade, de fazer um “retiro” é evidente.
1) O autoconhecimento
De tempo em tempo temos de parar e refletir, meditar, fazer um retiro. Este é um tempo privilegiado para escutar Deus falando dentro de nós, falando de mansinho (é a brisa que passa 1Rs 19, 11-13), tentando mostrar seu plano para cada um de nós. Sim, Deus tem um plano para cada um! É necessário que cada um descubra qual é este plano, que o aceite, que o cumpra: “Meu alimento é fazer a vontade de meu Pai” (Jo 4,34). Um coração que escuta, aproxima-se cada vez mais daquele que é escutado.
Deus tem um plano para toda a humanidade, um plano para nós, cristãos: viver a fé em Jesus Cristo, em todas as suas dimensões: Em relação a Deus – Filho; Em relação aos outros – Irmão; Em relação à Natureza – Guardião; Em relação a você mesmo – encontrar seu lugar único, ser você mesmo, realizar-se (santidade).
Devemos descobrir quem realmente somos. Conhecer-se a si mesmo é o início da sabedoria. Somente assim se pode conhecer e amar a Deus e a missão que ele tem para cada um de nós.
Desta maneira, todo momento de espiritualidade, é um tempo bom para tirarmos as máscaras que a vida nos obriga a usar. Nossa realidade é dura. Há a tendência ao individualismo, fechamento no próprio mundo com base na ética do instante. Religião invisível, sem compromisso comunitário. A verdade religiosa parece se transformar em opinião pessoal. Complexidade, diferenças e fragmentação. Tudo é revisado continuamente. Exclusão crescente e violência constante.
Em meio a tudo isso, perdemos o contato com o centro de nossa alma. É ali que Deus reside: “Deus me é mais íntimo que minha própria intimidade” (S. Agostinho in Confissões, Liv. LVII 6,4)
Na busca de sua alma e do sentido da vida, cada um precisa descobrir novos caminhos que o levem para a interioridade. É preciso sentir seu próprio espaço interior como um lugar de experiências vitais. É preciso atravessar os pantanais da alma para chegar ao seu centro. Os pantanais da alma são nossos medos, sentimentos de perda e de culpa, solidão, raiva, ansiedade… “Darei ao vencedor uma pedra branca e, gravado nela, um nome novo que somente conhece quem o recebe” (Ap 2,17). Quem empreende esta aventura sai da alienação e chega ao conhecimento de si mesmo e de Deus.
Na questão do autoconhecimento, os místicos e sábios de todas as religiões e de todos os tempos coincidem: “Conhece-te a ti mesmo” (inscrição no Templo de Delfos-Grécia); “Torna-te quem tu és, conhecendo-te” (Píndaro); “Quem conhece os outros é sábio, quem se conhece a si é perfeito” (Tao-te-king cap.33); “Todas as graças de Deus são concedidas ordinariamente envoltas com o conhecimento próprio” (S. João da Cruz in Noite escura, Liv. I, cap. 12,2); “O conhecimento de si mesmo é coisa tão importante, este descer dentro de si mesmo, que não queria que nisso houvesse relaxação” (Sta. Teresa de Jesus, in Moradas, cap. I, n. 1-3); “O humilde conhecimento de si mesmo é um caminho mais certo para ir a Deus que o esquadrinhar de todas as ciências”(Imitação de Cristo, Liv. I, cap.3); “O caminho para atingir o conhecimento verdadeiro e a experiência de meu ser – vida eterna que sou – é este: nunca abandones o autoconhecimento” (Sta. Catarina de Sena, in Diálogo, Parte I, 2.3). Enfim, C. G. Jung: “Uma resposta positiva ao problema da experiência religiosa apenas pode dar-se, se o homem estiver disposto a satisfazer às exigências de um exame e conhecimento rigoroso de si.” (in Presente e Futuro, cap. 6).
Refletir buscando conhecer-se, é uma bênção e oportunidade de refazer, recomeçar e reorientar a vida enquanto ainda é tempo. Por isso, o encontro para rezar, meditar e autoconhecer-se, é sempre um tempo favorável, uma graça que não se pode desperdiçar!
No momento da morte, nos ensina a escatologia cristã, o homem se torna definitivo, nada mais pode ser alterado ou mudado nem nos seus atos nem na sua personalidade. A morte é o ponto final em um processo dinâmico, no decorrer do qual você se tornou esta única e inconfundível pessoa. Na hora de nossa morte, somos o que fizemos de nós no decorrer de nossa vida, somos o resultado de nossas decisões tomadas. Na morte, não há mais possibilidade de fugir de si mesmo, de recomeçar e corrigir-se. Na morte, a pessoa se conhecerá pela primeira vez como ela é realmente, na sua dimensão pessoal, sócio-estrutural, histórica. Haverá a presença total, presença da própria pessoa a si mesma, presença de tudo o que a pessoa fez ou omitiu durante sua vida. Por isso, é necessário buscar a fonte interior, purificá-la para poder beber a água pura desta fonte que vivifica: “Bem-aventurados os puros de coração porque verão a Deus” (Mt 5,8).
Na sua morte, a pessoa humana conhece-se a si mesma na presença de Deus. Não é Deus que julga o homem na morte. Na morte, a própria pessoa se julga diante de Deus. A própria pessoa vai perceber a distância entre sua vida vivida e o projeto de Deus para ela. Poderemos perceber qual o projeto que Deus tinha para nossa vida pessoal (evolução plena, vontade de Deus) e o que realmente fizemos de nossa vida, até que ponto aceitamos ou não a graça, a ajuda de Deus (evolução realizada). Este ato de cognição diante de Deus já é parte do juízo.
- Ânsia de liberdade e auto-realização
“Quem me libertará deste corpo de morte?” Rm 7,14-24
O ser humano procura um amor capaz de levá-lo além dos estreitos limites de sua fraqueza, do seu egoísmo e, sobretudo, de sua morte. Jesus pergunta ao homem: o que procuras na vida? O homem responde: Mestre, onde moras? (Jo 1,35-44). O paralítico de Bethesda: o homem espera uma oportunidade de se curar, de ser feliz (Jo 5,1-9). A samaritana sedenta: Deus sempre espera o homem à beira do poço (Jo 4, 4-16).
Para fazermos um bom encontro consigo mesmo, é necessário descobrirmo-nos necessitados de misericórdia e libertação. Somos pecadores, temos ferimentos, temos nossa ferida secreta que precisa ser curada. Qual é nossa ferida original? Deus nos espera à beira do poço, ele nos busca e se dispõe para o encontro pessoal, ele quer nos saciar, nos curar.
A samaritana teve vários maridos, buscava ser amada – sua ferida secreta era não sentir-se amada – buscava de forma errada saciar sua sede existencial de felicidade. Ela não havia encontrado a fonte certa para beber. Tinha sede, bebia em fonte errada, aumentava a sede e aumentava a infelicidade. Jesus se revela como a verdadeira fonte capaz de saciar a sede existencial de felicidade que o ser humano traz dentro de si. Temos necessidade de um diálogo com Cristo a respeito de nossa vida. A samaritana acreditou nele, sentiu-se amada por ele. A fé no amor plenificou sua vida a ponto de tornar-se missionária. A fé autêntica leva ao testemunho.
A maioria das pessoas, como a samaritana, vê o problema do amor, antes de tudo, como o de ser amado, em lugar de amar. A mais profunda necessidade do homem é superar o sentimento de separação, sua solidão última para realizar a união. Apesar de o amor ser o mais importante, porque somente ele realiza o homem, na realidade, quase tudo o mais é considerado mais importante que o amor: sucesso, prestígio, dinheiro e poder…
Quase ninguém se preocupa em aprender a amar, saber amar, perceber que o amor é doação, é o êxodo de si mesmo para o Pai, passando pelo outro (os irmãos). Na esfera das coisas materiais, dar significa ser rico, não é rico quem muito tem – este é possuidor – mas quem muito dá. Assim é na esfera do amor: é amado quem ama primeiro.
O amor infantil segue o princípio: amo porque sou amado, amo-te porque necessito de ti. O amor amadurecido segue o princípio: sou amado porque amo, necessito de ti porque te amo. Esta é a descoberta que devemos fazer nestes dias para nos ajudar a crescer.
- Espiritualidade: busca de ouvir o que o Espírito nos diz
Espiritualidade é uma vivência, uma maneira de viver, um estilo de vida; “Uma pessoa será verdadeiramente espiritual (sábia) quando houver nela presença clara e atuação marcante do Espírito Santo de Deus, quando vive movida pelo Espírito. Espírito é substantivo concreto, e espiritualidade é o substantivo abstrato” (D. Pedro Casaldáliga). São Paulo nos recorda que Os verdadeiros filhos de Deus são aqueles que são movidos pelo Espírito Santo (cf. Rm 8, 14).
Tudo o que Jesus fez foi movido pelo Espírito, Jesus foi um homem de profunda espiritualidade (Mc 1,12). Espírito não é o contrário de matéria (Jesus não separa corpo e espírito); para ser espiritual, não precisamos fugir do mundo: espiritual é tudo o que é tocado por Deus (Jo 3, 9-15).
Vida espiritual é o processo de iluminação crescente através da fé que vai eliminando nosso medo. É viver a melhor parte que não será tirada (Lc 10,38-42).
A espiritualidade é como a seiva da árvore, é o motor que impulsiona a caminhada. Examinar nossa espiritualidade é fazer algumas perguntas básicas: Como está minha escala de valores? Qual o centro de minha vida? Qual a força que me impulsiona? Sou capaz de ter compaixão? Para nós, cristãos, espiritualidade é seguimento de Jesus Cristo na força do Espírito. Espiritualidade é viver a vida a partir de dentro.
Estar centrado no núcleo profundo de nós mesmos onde habita Deus. A espiritualidade só é possível em um processo de conversão no qual você busca ouvir o Espírito: fazendo a passagem do homem desintegrado (Gl. 5, 19-21) para o Homem integrado (1Cor. 13,1-8).
* No retiro, devemos fazer um discernimento: se estamos seguindo uma espiritualidade geradora de vida ou geradora de morte:
* Espiritualidade geradora de vida——-a de Moisés (fé que age imitando o agir de Deus em favor da vida)
* Espiritualidade geradora de morte——-a do Faraó (fé desencarnada, conformismo e ritualismo, em favor de si mesmo e do seu grupo: leva ao fanatismo)
Temos de ter tempo de ouvir. Tempo para deixar Deus nos visitar e devemos acolhê-lo. Obediência (Ob – audire), ouvir o que o Espírito diz, perceber os sinais dos tempos. Daí a necessidade de muitas vezes, fazer silêncio: “O silêncio é mistério do século futuro, as palavras são utensílios deste mundo” (Isaac o Sírio in Hom. 56)
São João da Cruz escreve: “Uma palavra disse o Pai, que foi seu Filho; e di-la sempre em silêncio e em silêncio ela há de ser ouvida pela alma” (in Ditos de Amor e Luz n.98)
Concluindo:
O cardeal Martini (cf. in Le ali della liberta, Ed. Piemme,2009,p 6-7) enumera cinco atores que se unem quando queremos ter vida espiritual: o primeiro é o Espírito Santo, o segundo é você mesmo, o terceiro é a Palavra de Deus, o quarto são as comunidades, os fiéis, que rezam pelos vocacionados, pelo seu padre, e o quinto é o espírito maligno, o qual é o primeiro a trabalhar, logo que você toma a decisão de ter uma vida espiritual séria, para que nada dê certo. Porque quem tem espiritualidade está seguro no caminho da salvação.
No entanto, somos chamados a nos preparar através da oração e de uma vida justa, e esperar Deus agir em nós. Somos chamados a buscar a face de Deus continuamente: “Si dixeris sufficit et peristi” (Se disseres basta, já pereces – Santo Agostinho in Serm. 169,15,18).
O homem é como o arquiteto ou pedreiro que, obra por obra, ação por ação, vai construindo o edifício de sua vida. Sobre que fundamentos? A obra que faço por puro egoísmo, cobiça ou ambição, por vaidade ou covardia, se fundamenta num terreno movediço, na areia; A que faço segundo a vontade ou desígnio de Deus, se fundamenta no terreno sólido, na Rocha (Mt 7,24-27). Rocha é a vontade do Pai que dá consistência à nossa vida se a pomos em prática. Se não pudermos construir um palácio, construamos uma casinha simples, mas o importante é o fundamento: Jesus Cristo.
Cada um é chamado a descer no fundo do poço existencial para encontrar lá no fundo a pérola preciosa, que é a presença de Deus em nós. No dia a dia da existência, os afazeres múltiplos, o ativismo, o estresse, as informações e distrações tomam nosso tempo e nós não nos dedicamos ao “único necessário”, como diz Jesus a Marta (Lc 10,42). Então, nestes dias, temos um tempo de graça. É misterioso o caminho da graça de Deus em nós, dialogando com nossa liberdade.
Sugestão de leitura orante: 1Rs 19, 1- 14 e Rm 8, 18-27