Palestra proferida por Dom Pedro Carlos na aula inaugural do curso de Teologia, da Escola Diocesana de Teologia.
- Projeto Salvífico de Deus e Igreja
A Igreja não só esteve na intenção de Jesus, mas, também é componente do projeto salvífico de Deus. Foi prefigurada desde a criação e está latente no Antigo Testamento (Antiga Aliança). A Igreja foi preparada na história do povo de Israel, ela é herdeira das promessas feitas a Abraão (Gl 3,15-19). O Vaticano II nos fala de uma Igreja que vem desde Adão, desde o justo Abel, como uma criança em gestação: “…desde a origem do mundo a Igreja foi prefigurada. Foi admiravelmente preparada na história do Povo de Israel e na Antiga Aliança. Foi fundada nos últimos tempos. Foi manifestada pela efusão do Espírito Santo” (LG n. 2). A Igreja fundada nos “últimos tempos” (novissimus temporibus), isto é no tempo do Jesus histórico e do Cristo pascal.
A Lumen Gentium também fala de “atos fundantes” ou seja, uma fundação progressiva (LG n. 5) que se manifesta plenamente em Pentecostes, quando recebe sua configuração definitiva e a missão de evangelizar, de “missionar” todos os povos.
Fica claro, portanto, que a iniciativa de formar a Igreja não vêm dos seres humanos, mas de Deus. Ela é dom de Deus á humanidade, é a assembléia daqueles que foram chamados, convocados (cf. 1Cor 1, 26-29). A Igreja brota do mistério trinitário expresso em imagens usadas por S. Paulo: projeto do Pai (Povo de Deus), executado através da obra redentora do Filho (Corpo de Cristo) na força do Espírito Santo que a impulsiona (Templo do Espírito Santo). Em uma grande sintonia, o Pai projeta, o Filho executa e o Espírito Santo administra. Estes são os princípios estruturadores da comunidade eclesial (D. Tepe).
A Igreja é, pois a comunidade de Fé, comunidade única no mundo, que guarda a memória de Jesus Cristo, assistida pelo Espírito Santo. A fé em Jesus Cristo é eclesial e não individual. Eu creio na (dentro) Igreja: “Aprouve a Deus salvar a todos não individualmente, mas em comunidade” (cf. LG n. 9). Portanto não existe cristianismo sem Igreja. Ela É comunidade de seguimento de Jesus Cristo, que guarda sua memória. Comunidade única no mundo porque assistida pelo Espírito Santo, celebra a presença do Ressuscitado e o anuncia ao mundo. Cada comunidade eclesial existe por iniciativa de Deus, como dom ( é Deus que envia seu Filho), pois a comunidade é fruto da fé e é próprio da dinâmica da fé reunir,congregar e expandir.
- O “ser” missionário da Igreja
Um dos maiores desafios da Igreja é ser acolhedora como tanto insiste o Papa Francisco frisando a cultura do descartável e a globalização sem solidariedade que se difunde cada vez mais: “A Igreja é chamada a ser sempre a casa aberta do Pai”(EG 47).
A Igreja somente acabou de nascer em Pentecostes, quando se manifestou ao mundo como um movimento missionário. A finalidade da missão é reunir as pessoas no Povo Messiânico cujo fundamento é Jesus Cristo morto e ressuscitado. Por isso a missão nasce do encontro com Cristo vivo (Palavra, Eucaristia, Próximo). Após o encontro vem a missão que não é atividade circunstancial da Igreja, mas pertence ao ser da Igreja. A finalidade do discipulado é a missão: “Sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judéia, na Samaria, e até os confins da terra” (At 1,8).
Mais que serviço missionário da Igreja podemos falar que a missão de Jesus tem uma Igreja a seu serviço: “A Igreja peregrina é, por sua natureza, missionária, visto que tem a sua origem, segundo o desígnio de Deus Pai, na missão do Filho e do Espírito Santo. Este desígnio brota do amor fontal, isto é da caridade de Deus Pai…” (AA n. 2). E o Papa Paulo VI vai escrever que evangelizar constitui a graça e a vocação própria da Igreja, a sua mais profunda identidade, ela existe para evangelizar (cf. EN n. 14).
Através da missão a Palavra de Deus, a Boa-Nova do Evangelho caminha de pessoa a pessoa, de grupo a grupo, de povo a povo através da História. A palavra cresce e se multiplica (cf. At 12,24). Os Atos dos Apóstolos nos mostra a importância dos evangelizadores convictos, movidos pela força do Espírito Santo. Por sua vez quem é evangelizado se torna evangelizador.
Quem não se tornou evangelizador é porque ainda não compreendeu, ou não assimilou a Palavra (Mensagem do Reino) com profundidade (cf. Rm 16). A missão progride a partir da comunidade (Igreja) alimentada pela Eucaristia (Jesus). Não se pode separar Jesus, Reino e Igreja (João Paulo II in RM 18)É a comunidade que envia o evangelizador. Não existe evangelização ou missão sem comunidade e não existe comunidade sem Eucaristia.
A missão tem sua fonte no encontro com Cristo vivo (Jo 4,28-30; Mt 28,16-20). É na Eucaristia que nos encontramos de um modo todo especial com Cristo vivo. A Eucaristia forma a comunidade e alimenta a missão (At 2, 42). Se não for alimentada pela Eucaristia, a missão perde a sua identidade, torna-se proselitismo, propaganda, busca de mercado. A Eucaristia é festa (pão/corpo, partilha, justiça do Reino) e sacrifício-serviço (vinho/sangue, amor-solidário, entrega da vida). A missão visa a criação de um “mundo eucarístico” onde se glorifica a Deus por uma vida na justiça e santidade.
Em uma Igreja em saída (cf. Cap. I EG), “A causa missionária deve ser a causa de todas as causas’(Papa Francisco in EG 15).
- Que Igreja queremos ser?
POVO DE DEUS. A partir da imagem de Povo de Deus que nos indica o projeto do Pai criador de incluir toda a criação na participação na comunhão de seu amor(é o projeto grandioso do Reino) a Igreja se manifesta na sua historicidade. A Igreja missionária deve ser militante, isto é desenvolver a prática da justiça e da caridade. A Igreja é assim una pela convocação do Pai, católica pela destinação universal:
Igreja/Comunidade fraterna e igualitária de batizados, o que une os membros da Igreja é mais do que o que divide.
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- Igreja/Comunidade organizada e estruturada, muitos dons e muitos carismas que devem estar unidos. O pastor é aquele que recebe o dom de manter unido o Povo de Deus como comunidade de fé e amor e deve exercer este dom na fidelidade, com temor e tremor.
- Igreja/Comunidade solidária com os pobres porque ela é o Novo Israel que á semelhança do Antigo Israel, nasceu do Êxodo (Ex. 3) no qual Deus libertou da escravidão do Egito.Deus escolhe os pobres (cf. l Cor 1, 27-28).
- Igreja/Comunidade toda ela ministerial, unidade na diversidade.
CORPO DE CRISTO. A partir da Imagem de Corpo de Cristo percebemos que o fundamento do Povo de Deus é Jesus Cristo, pedra fundamental. A Igreja missionária deve ser profética confrontando sempre a realidade com o Evangelho. Cristo é o corpo e seu espírito é a força que dá coesão a este corpo.
- Igreja/Comunidade da Escritura e Tradição, pois é apostólica e se reporta sempre a esta sua origem. Herdeira dos apóstolos, da fé apostólica.
- Igreja/Comunidade do Batismo que culmina na Eucaristia.
- Comunidade de Belém/Nazaré kenose (Encarnação) e da Páscoa (Ressurreição)
- Comunidade profética e martirial. A Igreja faz o memorial do crucificado que é o ressuscitado (evangelização integral).
TEMPLO DO ESPÍRITO SANTO. A partir da imagem de Templo do Espírito Santo, podemos completar o princípio cristológico com o princípio pneumático (Rm 8; Gl. 4; 1Cor 3, 16; 6,19). O Espírito Santo é o dinamismo da Igreja a tal ponto que poderíamos chamar os Atos dos Apóstolos de Atos do Espírito Santo. O Espírito é santificador, sem santidade de vida não existe missão. É também a santidade de vida de seus membros que dá á Igreja autoridade para evangelizar.Tudo o que os apóstolos realizam é “ movido pelo Espírito Santo”.
- Igreja/Comunidade dinâmica e escatológica
- Igreja/Comunidade Sacramento do Reino. Não se pode separar a pessoa de Jesus da causa de Jesus (Reinado do Pai)
- Igreja/Comunidade a serviço da justiça do Reino (Mt. 25, 31-46).
- Igreja/Comunidade dos sinais dos tempos que supera o imobilismo para se abrir aos novos caminhos indicados pelo Espírito Santo (cf. GS 4,11; 44).
- Mundo atual e desafios à Igreja
Vejamos alguns desafios marcantes do mundo atual, ou seja, da sociedade em que vivemos e na qual está imersa a Igreja. Entre tantos podemos destacar:
- Secularismo crescente em meio ao processo de globalização. Isto quer dizer que estamos diante de uma mudança radical na cosmovisão cultural do ocidente. Tudo se interliga (globalização),mas em torno do dinheiro (não de Deus). Tudo está á disposição do ser humano. Nada é sagrado, a não ser a vontade do homem. Cientifismo positivista e materialista. Há uma mutação da cultura. Mais que época de mudança, uma mudança de época. Virada antropocêntrica.
- Individualismo. A subjetividade foi o núcleo da modernidade e agora o individualismo é o núcleo da pós-modernidade. O indivíduo está atado a sua subjetividade, às suas experiências como critério de verdade, o sujeito interfere na constituição da verdade e assim tudo é relativo. Cada um tem uma visão própria para as coisas segundo seus próprios critérios. Religião confinada ao âmbito pessoal e particular dos indivíduos. Busca de satisfação, fama e poder. Consumismo.
- Desumanização. Pobreza crescente, alargamento do fosso entre ricos e pobres a nível mundial. Basta pensar na abundância da Europa frente á miséria da África p. ex. O vazio de sentido é uma das conseqüências maiores da exclusão social desumanizadora.
- Desespiritualização. A inspiração cristã foi substituída pelas ideologias que mostraram sua falência. Esta falência faz renascer uma espiritualidade que vem proliferando ora como fundamentalismo (religiões cheias de certezas e soluções) ou uma espiritualidade “ligth” que resolve todos os problemas e satisfaz todas as aspirações como a “Nova Era”, ou seitas Evangélicas. Permanece a busca de sentido…Há um retorno do religioso de maneira anárquica e que não quer dizer desejo de encontro com Deus. Pluralismo religioso.
Enfim, há uma ruptura entre cristianismo e a cultura ocidental, a cultura da modernidade e pós-modernidade deixou de ser cristã. Isto assusta porque diante desta situação, não se pode colocar remendos, mas se deve repensar o cristianismo na sua globalidade, no seu todo. “Sem termos realizado ainda a transposição do cristianismo tradicional para o horizonte da modernidade, somos solicitados já a repensar e traduzir a fé no contexto da pós-modernidade” (Carlos Palácio in Persp. Teol. 36(2004)183). Aqui não estamos falando do lado positivo, ou negativo da modernidade e pós-modernidade, mas apontamos desafios.
- Pistas possíveis para uma ação pastoral
Estamos em uma época de “desafeição eclesial” na qual se fala do cristão não eclesial. O desafio para a Igreja não é a heresia, mas a indiferença, o abandono silencioso. O mercado substitui a Igreja: fora do mercado não há salvação. Olhando para a Igreja dos primeiros séculos podemos auferir pistas que nos podem orientar:
Em linhas gerais, a Igreja é desafiada a radicalizar-se no essencial: voltar-se para o Evangelho, para a pessoa de Jesus Cristo, a fim de ser missionária em favor do Reino de Deus, confiando unicamente na força do Espírito Santo. O dom do Espírito confere audácia ao missionário(a).
- A questão da identidade não pode ser posta de lado. O que é ser cristão? É seguir Jesus Cristo morto e ressuscitado (At 11,26). Em Jesus de Nazaré tudo está dito pelo Pai e tudo está ainda por dizer à Humanidade. Por isso a identidade cristã a partir de Jesus Cristo é dinâmica e vai se formando sempre e se renovando em cada época. Temos que discernir em nós mesmos o que é e o que não é cristão e ficarmos com o que é cristão. Devemos, portanto, purificar ou simplificar (no sentido de busca do essencial) a doutrina e a religião.
- Assumir o lugar geográfico da missão: as cidades, ou melhor, as casas (igreja doméstica). Não fazer coro com a idolatria da cidade que cultua os deuses do prazer, fama e poder. Ousar propor o amor-serviço como “modus vivendi” do cristão.
- A identidade interna da comunidade se alicerça na noção do valor sagrado do semelhante; quem não ama o irmão vive no pecado (1Jo 3,10). A solidariedade como expressão necessária do amor. Os laços de sangue são suplantados pelos laços do amor em Cristo oriundo do batismo.
- Na missão o objetivo principal é evangelizar: fazer discípulos de Jesus dando testemunho de vivência das bem-aventuranças. A comunidade deve aceitar ser no mundo como Jesus: sinal de contradição. Valor do testemunho na evangelização (cf. Paulo VI in EN 14). “A palavra de Deus e a missão devem permear todas as atividades de nossa Igreja. Somos impelidos a sair da área de conforto para unirmo-nos a todos os que se entregam para difundir o Reino de Deus”( Documento Sinodal Diocese de Santo André número 10).
- A comunidade é comunidade pascal, vive na certeza da ressurreição de Jesus Cristo enquanto espera sua volta. Por isso é testemunha da esperança vivendo mais da fé naquilo que não vê ainda realizado plenamente do que naquilo que vê. Sinalizar o valor da comunidade como fonte de alegria na fé e no amor.
- Alguns itens de ordem prática para se incrementar a missão: acolhimento dos fiéis (com freqüência anônimos e distantes).
- Formar a comunidade de fé como tarefa continuada (aqui destaca-se a tarefa primordial do presbítero como mistagogo). Vencer a inadequação dos meios de comunicação dentro da Igreja. A pastoral com a juventude é um desafio permanente já notado por Puebla, mas não ainda assumido. Formar leigos adultos que possam assumir responsabilidades liberando os padres para suas tarefas específicas. Saber dar uma orientação ética e moral que transmitam de forma adequada a proposta evangélica.
- Pobres; “A associação aos pobres corresponde ao caminho mais seguro da salvação. A Igreja em seu profetismo é a advogada dos pobres (cf. DAp 554). Por isso, a nossa tarefa é fazer dos interesses dos pobres, os nossos próprios interesses e colocar a Igreja em movimento de saída de si mesma, de missão centrada em Jesus Cisto, de entrega aos pobres (cf. EG 97)”(Constituição Sinodal – Diocese de Santo André n. 11).
- Tudo isso exige de nos uma conversão pastoral missionária (cf. EG 25) que começa no coração de cada um.